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CAPÍTULO PRIMEIRO
DO TÍTULO
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da
Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu.
Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e
acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não
fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei
os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e
metesse os versos no bolso.
— Continue, disse eu acordando.
— Já acabei, murmurou ele.
— São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto;
estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou
alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos
reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me
zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me
assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”.—
"Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas
essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo”.— "Meu
caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá
aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou
moça”.
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão,
mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por
ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não
achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do
livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo
rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é
sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
CAPÍTULO II
DO LIVRO
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos
os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de
propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá.
Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em
que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e
economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem
as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente,
varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do
teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e
grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos
do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César,
Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de
tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim
decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter
sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também
análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e
lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o
mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em
tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros,
vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu
mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à
pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito
externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que
me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os
documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data
recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às
amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na
mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga
muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa.
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos
respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe
achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de
memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco
apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar,
jardinar e ler; como bem e não durmo mal.
Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis
variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política
acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em
fazer uma História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do padre Luís
Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia
documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os
bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que
eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse
alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar
ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez,
inquietas sombras?...
Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim,
Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus
comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências
que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para
alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de
novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas
aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.
CAPÍTULO III
A DENÚNCIA
Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me
atrás da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que
é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para
agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.
— D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho no seminário?
É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.
— Que dificuldade?
— Uma grande dificuldade.
Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de
concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e,
abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.
— A gente do Pádua?
— Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece
bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e
esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que
lutar para separá-los.
— Não acho. Metidos nos cantos?
— É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não sai de
lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas
corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais
cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida...
— Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que
faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze
à semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos,
desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta
coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, você
que acha?
Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, traduzido em vulgar, queria dizer: "São
imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o
gamão?"
— Sim, creio que o senhor está enganado.
— Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão
depois de muito examinar...
— Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo
no seminário quanto antes.
— Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, tem-se ganho o
principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois a igreja
brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a
Constituinte, e que o padre Feijó governou o Império...
— Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores
políticos.
— Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero
é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.
— Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno,
se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das
portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?
— É promessa, há de cumprir-se.
— Sei que você fez promessa... mas uma promessa assim... não sei... Creio que,
bem pensado... Você que acha, prima Justina?
— Eu?
— Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é que
sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana
Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto é coisa de lágrimas?
Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter
com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na
sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que tio
Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Glória! Prima Glória!" José
Dias desculpava-se: "Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela
estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo...”
CAPÍTULO IV
UM DEVER AMARÍSSIMO!
José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às
idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o
gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com
as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos
últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as
calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com
um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque
de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro,
chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos.
Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos
preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a
premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever
amaríssimo!
CAPÍTULO V
O AGREGADO
Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em
acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como
naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem
vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a
cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves,
gravíssimo.
Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda
de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por médico
homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de febres;
José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração.
Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias
recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre.
— Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando
conosco.
— Voltarei daqui a três meses.
Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o
que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o
Rio de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo da
chácara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que
fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou
confessando que não era médico. Tomara este título para ajudar a propaganda da
nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe
permitia aceitar mais doentes.
— Mas, você curou das outras vezes.
— Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios
indicados nos livros. Eles, sim; eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão... Não
negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia
é a verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.
Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o
dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa da
família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me,
não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele
deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia, depois da missa, ele foi despedir-se
dela.
— Fique, José Dias.
— Obedeço, minha senhora.
Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor.
Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama.
"Esta é a melhor apólice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa
autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar
obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste
mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham
antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das
pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e
liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de
atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum
fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava
muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já
teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele,
abaixo de Deus, era tudo.
— Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.
— Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido
lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de
quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a
cópia de papéis de autos.
CAPÍTULO VI
TIO COSME
Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo,
como prima Justina; era a casa dos três viúvos.
A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções
do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório
na antiga rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no
crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e
despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio
Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.
Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das
minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que
minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à
cocheira, segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto
seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o
primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito.
Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e
morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim.
Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o
mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.
Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça
(donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia
montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em
cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o
chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: "Mamãe! mamãe!" Ela acudiu,
pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me,
enquanto o irmão perguntava:
— Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?
— Não está acostumado.
— Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte
a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os outros
rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, mana Glória.
— Pois que se queixe; tenho medo.
— Medo! Ora, medo!
A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que
por vergonha de dizer que não sabia montar. "Agora é que ele vai namorar
deveras", disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio
Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros.
Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado;
mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou
com o resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do
ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez
dizia pilhérias.
CAPÍTULO VII
D. GLÓRIA
Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque
Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não
quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a
fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia
de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos,
onde vivera os dois últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira,
descendente de outra paulista, a família Fernandes.
Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago
contava quarenta e dois anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em
esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da
ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um
xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os
cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de
tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhos. Lidava assim, com os seus
sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os
serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite.
Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A
pintura escureceu muito, mas ainda dá idéia de ambos. Não me lembra nada dele,
a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns
olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que
me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas
voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha
mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os
dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é
que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no
bilhete comprado de sociedade.
Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda
de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a
esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem
casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta
para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora
me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta
fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor
ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai,
olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..."
Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança
e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou
muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes
tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.
CAPÍTULO VIII
É TEMPO
Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca,
sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos.
Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi
como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das
luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha
ópera. "A vida é uma ópera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e
morreu... E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela.
Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo.
CAPÍTULO IX
A ÓPERA
Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso é que me faz mal",
acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao
empresário e expunha-lhe todas as injustiças da Terra e do Céu; o empresário
cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes
dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa
de Babilônia. Às vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais
idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui
jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a
definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma
ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:
— A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo
soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o
contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos
comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é
excelente...
— Mas, meu caro Marcolini...
— Quê?...
E, depois, de beber um gole de licor, pousou o cálice, e expôs-me a história da
criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que
aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava
a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que
a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse
aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi
descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem
mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão,
por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás
levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais
que os outros, — e acaso para reconciliar-se com o céu, — compôs a partitura, e
logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
— Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura,
escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-
me com ela a vossos pés...
— Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
— Mas, Senhor...
— Nada! nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de
misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou
um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as
partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
— Ouvi agora alguns ensaios!
— Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a
audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em
que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga
que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim
explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão.
Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos
motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa
das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As
partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos
imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem
acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o
andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas
desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde
achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o
mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura
corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada
com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O
grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para
imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas
com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem
Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos.
Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a
letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da
composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
— Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se
podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O
êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais,
que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos
são os chamados, poucos os escolhidos". Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
— Tem graça...
— Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago,
eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e
última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver
alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos
homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc.
Este cálice (e enchia-o novamente), este cálice é um breve estribilho. Não se
ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma
ópera...
CAPÍTULO X
ACEITO A TEORIA
Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz
explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela
verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se
casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um
quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber
que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada
principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.
CAPÍTULO XI
A PROMESSA
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri
à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter
a minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a
ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de
dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
prometendo, se fosse varão, metê-lo na igreja. Talvez esperasse uma menina.
Não disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz; contava fazê-
lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o
terror de separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que
buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares.
Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde possível, fez-me aprender
em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele padre Cabral, velho amigo
do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.
Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe
esperou que os anos viessem vindo. Entretanto, ia-me afeiçoando à idéia da
igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens de santos, conversações de
casa, tudo convergia para o altar. Quando íamos à missa, dizia-me sempre que
era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do
padre. Em casa, brincava de missa, — um tanto às escondidas, porque minha mãe
dizia que missa não era coisa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu.
Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia
entre nós; a hóstia era sempre um doce. No tempo em que brincávamos assim,
era muito comum ouvir à minha vizinha: "Hoje há missa?" Eu já sabia o que isto
queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia por outro nome. Voltava
com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e precipitávamos as
cerimônias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer três vezes, penso
que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho
nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do
sacrifício.
Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser
negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, pediam antes o seminário do
mundo que o de São José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como
alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito.
CAPÍTULO XII
NA VARANDA
Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo
querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao
quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-
me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José
Dias:
"Sempre juntos..."
"Em segredinhos..."
"Se eles pegam de namoro..."
Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à
direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da
crise, a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me
dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às
vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a
abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas:
"Em segredinhos..."
"Sempre juntos..."
"Se eles pegam de namoro..."
Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si
que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as
meninas de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham
outro ofício, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos
coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma
cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião.
Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às
saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes
dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do
colégio, é certo que não restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou
pouco a pouco, e no último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas
conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão,
uma flor; outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a
recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me
passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o
mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então
Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia,
tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis; mas eu
retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na
véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram
aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos
na Lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar
a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos
unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa
familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia, alguma
frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença,
dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa
hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de
pitanga.
Pois, francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e outras
confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu
a buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não
descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias
palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de
recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com o
pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia
os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes,
e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos
que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a
pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com
exclusivismo também.
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a
mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o
que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria
mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava
Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam,
estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da
seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem
achei que lhe fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie.
Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a primeira.
CAPÍTULO XIII
CAPITU
De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:
— Capitu!
E no quintal:
— Mamãe!
E outra vez na casa:
— Vem cá!
Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a
chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às
manhãs também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos
braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça não as rege por meio de idéias.
As minhas chegaram ao pé do muro. Havia ali uma porta de comunicação
mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta
não tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de
outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que
exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um lado, e sendo
recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam,
o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do braço, para
imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso à doente, e pedia-lhe
que mostrasse a língua. "É surda, coitada!", exclamava Capitu. Então eu coçava o
queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou
dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do médico.
— Capitu!
— Mamãe!
— Deixa de estar esburacando o muro; vem cá.
A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis
passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão andarilhas, pareciam agora presas
ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do
muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la
olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder
alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque
ela veio a mim, e perguntou-me inquieta:
— Que é que você tem?
— Eu? Nada.
— Nada, não; você tem alguma coisa.
Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um
coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os
olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um
vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com
as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas.
Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo
largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não
cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão
comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que
ela mesma dera alguns pontos.
— Que é que você tem? repetiu.
— Não é nada, balbuciei finalmente.
E emendei logo:
— É uma notícia.
— Notícia de quê?
Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que lhe
faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não
gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar
claramente, tinha agora a vista não sei como...
— Então?
— Você sabe...
Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou
esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto
que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu
agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra
maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o
desejo de ler o que era.
CAPÍTULO XIV
A INSCRIÇÃO
Tudo o que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante. O que se lhe
seguiu foi ainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li
estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos:
BENTO
CAPITOLINA
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e
ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou
três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro
falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco,
todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata
daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela
mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas
não traria nenhum, tal era a diferença entre o estudante e o adolescente.
Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e
era virgem de mulheres.
Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas.
Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a
meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um
altar, sendo uma das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o
cálice, os lábios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém
aprende, e é a língua católica dos homens. Não me tenhas por sacrílego, leitora
minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no
estilo. Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das
duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica. Os olhos continuaram a dizer
coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao
coração caladas como vinham...
CAPÍTULO XV
OUTRA VOZ REPENTINA
Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
— Vocês estão jogando o siso?
Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da mulher. Soltamos as
mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego,
disfarçadamente, apagou os nossos nomes escritos.
— Capitu!
— Papai!
— Não me estragues o reboco do muro.
Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pádua saiu ao quintal, a
ver o que era, mas já a filha tinha começado outra coisa, um perfil, que disse ser o
retrato dele, e tanto podia ser dele como da mãe; fê-lo rir, era o essencial. De
resto, ele chegou sem cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que
duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços
curtos, costas abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe
pôs. Ninguém lhe chamava assim lá em casa; era só o agregado.
— Vocês estavam jogando o siso? perguntou.
Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos.
— Estávamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, não agüenta.
— Quando eu cheguei à porta, não ria.
— Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver?
E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente
sério; eu estava ainda sob a ação do que trouxe a entrada de Pádua, e não fui
capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu.
Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por
estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há coisas que só se aprendem tarde; é mister
nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que
artificialmente tarde. Capitu, após duas voltas, foi ter com a mãe, que continuava
à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o pai, olhando
para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:
— Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece dezessete. Mamãe
está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.
— Está.
— Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor,
mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição em casa; escrevo todas
as noites que é um desespero; negócio de relatório. Você já viu o meu gaturamo?
Está ali no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver.
Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo Céu
nem pela Terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos
esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos.
Tinha-os de vária espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era
cercada de gaiolas de canários, que faziam cantando um barulho de todos os
diabos. Trocava pássaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns,
no próprio quintal, armando alçapões. Também, se adoeciam, tratava deles como
se fossem gente.
CAPÍTULO XVI
O ADMINISTRADOR INTERINO
Pádua era empregado em repartição dependente do ministério da guerra. Não
ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa
em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade
dele. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez
contos de réis. A primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar
um cavalo do Cabo, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura
perpétua de família, mandar vir da Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher,
esta D. Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha,
alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a
mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que
sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; afinal, teve de
ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi só
nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida do Pádua.
Escutai; a anedota é curta.
O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em
comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou
substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de
fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de
reformar a roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à mulher,
nos dias de festa matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de
verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposição de uma eterna interinidade.
Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque
chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas infelizes
que deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com
bondade, mas ele não atendia a coisa nenhuma.
— Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família,
tornar atrás... Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta
miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?
— Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua
mulher não tem outra pessoa... e que há de fazer? Pois um homem... Seja
homem, ande.
Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo,
fechado na alcova, — ou então no quintal, ao pé do poço, como se a idéia da
morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava:
— Joãozinho, você é criança?
Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir à
minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria
matar. Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que
maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma
gratificação menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser
homem, pai de família, imitar a mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que
acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe.
— Vontade minha, não; obrigação sua.
— Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.
Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no
chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéu em cortejar a vizinhança,
risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas,
a ferida foi sarando. Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a
cuidar dos passarinhos, a dormir tranqüilo as noites e as tardes, a conversar e dar
notícias da rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo, na
figura de dois amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha
o ar do costume; a ferida sarou de todo.
Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou a falar da
administração interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o
vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou
sendo a hégira, donde ele contava para diante e para trás.
— No tempo em que eu era administrador...
Ou então:
— Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dois meses
antes... Ora espere; a minha administração começou... É isto, mês e meio antes;
foi mês e meio antes, não foi mais.
Ou ainda:
— Justamente; havia já seis meses que eu administrava...
Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade
sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com
o vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: "Não desprezes a correção do
Senhor; Ele fere e cura".
CAPÍTULO XVII
OS VERMES
"Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles
também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma
dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos,
livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para
achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os
próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos
por eles.
— Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos
absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem
amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.
Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado
palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos
roídos fosse ainda um modo de roer o roído.
CAPÍTULO XVIII
UM PLANO
Pai nem mãe foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas, falávamos
do seminário. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notícia era a que me
afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera.
— Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminários; não entro, é
escusado teimarem comigo; não entro.
Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se
estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu,
para dar força às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo
jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me
faltasse na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem
descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la, sacudi-
la, mas faltou-me ânimo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dançara,
creio até que dormira comigo, deixava-me agora com os braços atados e
medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lívida, e rompeu nestas palavras
furiosas:
— Beata! carola! papa-missas!
Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu
não podia entender tamanha explosão. É verdade que também gostava de mim, e
naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o
despeito que lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como
entender que lhe chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir
costumes religiosos, que eram os seus? Que ela também ia à missa, e três ou
quatro vezes minha mãe é que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera
um rosário, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis defendê-la, mas Capitu
não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive
medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta
a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabeça... Eu, assustado, não
sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite
declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminário.
— Você? Você entra.
— Não entro.
— Você verá se entra ou não.
Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não era ainda a Capitu
do costume, mas quase. Estava séria, sem aflição, falava baixo. Quis saber a
conversação da minha casa; eu contei-lha toda, menos a parte que lhe dizia
respeito.
— E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim.
— Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe
estar que me há de pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a rua é
ele, você verá; não me fica um instante. Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção